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Constituição, sereias e cisnes

  • Foto do escritor: Rosa Miranda
    Rosa Miranda
  • 5 de out. de 2018
  • 3 min de leitura


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Sessão do Congresso que promulgou a Constituição Federal em 1988, eliminando resquícios do regime de exceção. Trinta anos depois, a democracia é novamente colocada sob ameaça (Foto: Arquivo/CN)

Com o país ainda engatinhando no processo de redemocratização, após duas décadas de ditadura militar, a promulgação da atual Constituição Federal era comemorada com festa no dia 5 de outubro de 1988. A quase coincidência da data com a eleição deste ano até poderia ser saudada. Afinal, ali se assinalava um marco, um “respiro” após tanto tempo de cidadania sufocada por botas e baionetas. Infelizmente, porém, o quadro que se desenha para o futuro não permite comemorações. O desfecho da disputa eleitoral sinaliza uma ameaça real de retrocesso que pode jogar na lata do lixo trinta anos de uma Constituição que, longe de ser perfeita, ao menos garante alguma liberdade e democracia.


Talvez os constituintes da época realmente não fizessem ideia de como seria difícil colocar em prática muitos daqueles artigos, quase duas centenas perfiladas na Carta. É que, após mais de vinte anos de regime fechado, cada um queria deixar sua contribuição pessoal na “Constituição Cidadã”. Houve exceções, é claro, a exemplo de parlamentares do antigo Centrão, mais preocupados em evitar a concessão de um “excesso” de direitos individuais, o que tornaria difícil manter o país sob controle do capital privado, e seus eleitores no cabresto.


O texto anterior, datado de 1967 e escrito pelo regime de exceção, retirava mais direitos do que concedia. Foi outorgado apenas três anos depois de um golpe militar apoiado por parte da sociedade brasileira, ludibriada pela “ameaça comunista” e pelos apelos em favor de uma governança “seria e eficiente”. Qualquer semelhança com a realidade atual não é, sem sombra de dúvidas, mera coincidência.


A efemeridade dos períodos democráticos no Brasil preocupa. E deveria provocar reflexão justamente naqueles que pensam com mais imediatismo e se deixar levar por promessas “moralização” que, na verdade, podem nos jogar o caminho da perdição. Quem, na juventude, viveu a ditadura do Estado Novo de Getúlio Vargas, em 1947, ainda teve tempo de presenciar a reabertura democrática e um novo fechamento, em 1964. Apenas uma geração se passou.


Hoje, pessoas que, quando jovens, vivenciaram a implantação do regime de exceção pelos militares, nos anos 60, ainda estão na ativa e temem ser mergulhados novamente num período de trevas, apenas três décadas depois. São depoimentos que mereceriam ser amplificados para chegarem aos ouvidos dos eleitores menos preocupados com as liberdades individuais, encharcados de revanchismo ou arrastados, como inocentes úteis, para a escuridão na qual as falas promessas ameaçam jogar o país.


Lamentavelmente, a vida cotidiana e os indicadores sociais registrados hoje revelam que muitos dos direitos do cidadão escritos nas cláusulas pétreas da atual Constituição – aquelas que não podem ser alteradas – estão longe de se tornar realidade. Trinta anos depois, saúde, educação, moradia, proteção à maternidade e à infância e outros “deveres do Estado” ainda não foram assegurados para boa parte da população brasileira.


O que esperar, então, de outro “governo” em regime fechado, capaz de descumprir regras constitucionais em nome da “lei e da ordem”? Resta pouco tempo para refletir nos males do discurso fácil. Aquele que sopra aos ouvidos apenas o que dá prazer de escutar. É preciso responsabilidade, calcular os efeitos em médio e longo prazos de uma decisão tomada na urna. Poucos segundos ali podem determinar anos de agravamento dos problemas, sofrimentos, desigualdades e, acima de tudo, falta de liberdade e de cidadania. É preciso pensar antes de votar, para que o canto da sereia não termine se tornando o nosso canto do cisne.


Matéria original no site sergiomontenegro.com.br, disponível aqui.

 
 
 

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